Ética do cuidado: By G. Conti - Accascina, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2899747

Renan Paloschi Zanandréa
Seminarista da Diocese de Vacaria/RS; Licenciado em Matemática e bacharelando em Filosofia pela Universidade de Passo fundo (UPF) e bacharelando em Teologia pela Itepa Faculdades.

“Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,33-34)

Da parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) a Igreja do Brasil escolhe o lema da Campanha da Fraternidade 2020 (CF 2020): “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,33-34). O tema Fraternidade e vida: dom e compromisso provoca os católicos brasileiros à reflexão acerca do cuidado com a vida, que é dom de Deus.

O samaritano, diferente do levita e do sacerdote do Templo, não fica indiferente ao sofrimento do homem caído à beira do caminho. Ele vê o sofrimento, sente compaixão e estende a mão. Neste ano, “[…] a Campanha da Fraternidade deseja fermentar uma cultura do cuidado, da responsabilidade, da memória e da proximidade, estabelecendo uma aliança contra todo tipo de indiferença e ódio” (Texto-Base, nº 71). Mas de que cuidado estamos falando? Qual o tipo de cuidado de que fala a CF 2020? De quem é a responsabilidade por esse cuidado? Talvez não tenhamos todas as respostas, mas podemos analisar a ética do cuidado em linhas gerais.

Muitas são as faces do ataque à vida. O Texto-Base da CF 2020 destaca algumas delas: desigualdade; globalização econômica; aborto; eutanásia; suicídio e suicídio assistido; eugenia; tráfico de drogas, de pessoas, de órgãos; crianças que perdem suas famílias; desemprego; ansiedade; stress; acidentes de trânsito; desatenção aos povos indígenas, às mulheres, aos pequenos agricultores; individualismo; mau uso das redes sociais e abuso dos meios de comunicação. Termos como mercantilização e banalização da vida (Texto-Base, nº 52 e nº 54) também aparecem no documento, revelando, assim, a realidade quanto ao cuidado com a vida na contemporaneidade.

“Vai e faze o mesmo” (Lc 10,37b)

Tomemos o que nos diz Santo Agostinho: “Os que amam a Deus e fazem a sua vontade, formam com ele uma só família, da qual Deus é o Pai. Serão pais uns dos outros, quando deles cuidam; filhos, quando se aceitam mutuamente; mas serão especialmente irmãos” (2002, p. 115). É o amor (caritas) que nos permite a proximidade com os outros, a ajuda, o cuidado. A caridade é a única que pode nos fazer agir de forma diferente em relação à vida, seja a nossa ou a de outrem. Por isso a CF 2020 nos provoca a “redescobrir a caridade”, tendo ela “[…] não só como inspiradora da ação individual, mas também, como força capaz de suscitar novas vias de enfrentamento dos problemas do mundo de hoje, renovando estruturas, organizações sociais e ordenamentos jurídicos” (Texto-Base, nº 117).

O cuidado para com o outro exige de nós o que chamamos de kenosis, o esvaziamento de si mesmo, ou seja, o fato de sair do próprio individualismo para dedicar-se inteiramente ao outro. Nessa perspectiva, o Texto-Base da CF 2020 afirma que a ação de cuidar do outro “é um esvaziar-se de si mesmo para deixar Deus preencher todo o nosso vazio com a abundância de sua graça” (nº 139). Jesus é o modelo perfeito de cuidado, dando exemplo de uma vida de dedicação ao próximo. Sua entrega “[…] na cruz é apenas o culminar desse estilo que marcou toda a sua vida” (Texto-Base, nº 20).

A apresentação do Texto-Base da CF 2020 nos lembra que “em Jesus Cristo, vencedor do pecado e da morte, somos vocacionados ao intercâmbio do cuidar: cuidamos uns dos outros, cuidamos juntos da Casa Comum, porque Deus sempre cuida de todos nós” (p. 8). E é a fé em Jesus Cristo, o verdadeiro samaritano, que nos impulsiona à prática da caridade, ao cuidado verdadeiro para com o próximo, que “[…] não é apenas alguém com quem possuímos vínculos, mas todo aquele de quem nos aproximamos. É todo aquele que sofre diante de nós” (Texto-Base, nº 8). A Igreja nos ensina que “o Senhor exige que amemos, como Ele, mesmo os nossos inimigos, que nos tornemos o próximo do mais afastado, que amemos como Ele as crianças e os pobres” (Catecismo da Igreja Católica, nº 1825).

E assim a CF 2020 nos provoca para que cuidemos da vida desde a fecundação até a morte natural, combatendo tudo o que pode destruir a vida do ser humano e da natureza. Nós somos chamados a ser luz, tendo como fundamento o exemplo do próprio Cristo, “[…] que, do alto do madeiro, viu e perdoou todos os pecados e nos salvou por sua misericórdia. […] Esse novo olhar precisa gerar e promover a vida, defendê-la e dela cuidar desde a fecundação até a plenitude” (Texto-Base, nº 84).

A CF deste ano nos alerta que “é possível que o mundo de indiferença e ódio nos considere loucos. De algum modo, somos: loucos de amor, loucos pela fé e, por isso, loucos pela vida” (Texto-Base, nº 89). Que a loucura da cruz (1Cor 1,18) desperte em nós o que é próprio dos que se configuram ao Cristo, Sumo e Verdadeiro Sacerdote, que morreu e ressuscitou por nós: o amor a Deus e o cuidado com o próximo, de modo especial com aqueles que mais precisam. Que Deus nos ajude, nesta Quaresma, a fazermos a experiência de uma verdadeira conversão. Que Ele, por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo, nos ajude a ver no cuidado para com o próximo o caminho para a santidade. Que possamos rezar como nos convida a Oração da Campanha da Fraternidade 2020: “ensinai-nos a sentir a verdadeira compaixão expressa no cuidado fraterno, próprio de quem reconhece no próximo o rosto do vosso Filho”.

Referências

AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. In: AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião; Cuidado devido com os mortos. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002 (Coleção Patrística).

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Documentos da Igreja. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

CNBB – CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Campanha da Fraternidade 2020: Texto-Base. Brasília, Edições CNBB, 2019.

 

As opiniões expressas no presente artigo, são de total responsabilidade de seus signatários, não expressando a posição oficial da Igreja Particular de Vacaria.

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